Sufocamentos

A chuva escorregava pelas paredes do prédio em frente, uma pequena avalanche que desaguava na cabeça de quem passava, bem pequeno, lá embaixo. Uma tempestade estava se aproximando da cidade, os temerosos corriam pelas calçadas e embaçavam os vidros dos ônibus dirigidos com pouco prudência pelos motoristas.
Era meio de tarde e a chuva não podia conter o calor abafado que me fazia transpirar levemente pelos poros. Naquele dia resolvi não trabalhar afim de organizar meus poucos pertences para a mudança que faria.
Ao passo que ia retirando as coisas de armários, gavetas, estantes, menos vontade eu tinha de fazer aquilo, mas era como fugir do irremediável e do irreparável, era preciso ir contra aquela sensação fria que me dominava a cada peça embrulhada em papel de jornal e posta em caixas de papelão. Para espantar este calafrio, ia cada vez com mais freqüência até a janela, espiar a chuva e fumar. Isso acalmava um pouco.
Vendo aquela chuva cair na rua suja e vendo aquele céu cinza, comecei a me dar conta de que estava prestes a deixar aquilo tudo, não tornaria mais a dormir sob aquele céu, nem teria meus sonos entrecortados pelo barulho de pneus cantando quando adormecia no sofá da sala, coisa que vinha acontecendo cada vez mais.
Olhava aquele apartamento, agora era pouco mais que um esqueleto, um amontoado de caixas espalhadas pelo chão, panos, vassoura, balde com água. Mas parecia invencível a crosta de sujeira formada em cada canto do imóvel, a impressão de total abandono era evidente, mesmo que com o zelo que tive com ele por tanto tempo. Mas as coisas mudam.
Nas paredes apenas o contorno das molduras de fotografias que se esplhavam por ali, todas agora guardadas - algumas jogadas -, as paredes nuas me causavam uma sensação de medo e liberdade ao mesmo tempo.
Não mais aquele cheiro, não mais aquele amor.
Quando ela partiu eu não vi, estava dormindo e acordei com um gosto amargo na boca. Era um Domingo. Demorei um tempo até perceber sua ausência, talvez tenha me dado conta no meio daquela tarde, como agora. Naquele dia não chovia, estava nublado, mas não chovia. O pranto com um pedaço de pão mordido estava sobre a mesa, uma caneca de café tomada até a metade. Esses foram os últimos indícios que ela deixou sobre sua existência naquele apartamento.
E na minha vida.
Saí para procurá-la, dei queixa na polícia, liguei para amigos, parentes, inimigos. Pensava comigo o que poderia ter acontecido, passei noites em claro e dias de escuridão. Até receber a carta.
Através de sua caligrafia precisa, deixou claro que o que a fizera partir havia sido um sufocamento que não podia definir. Por dentro e por fora e, no lado de fora, eu também a sufocava.
Depois disso, os dias se sucederam e eu ia me perdendo e me encontrando , como sempre acontece. Até que bati o olho no jornal e li a notícia de um assalto a banco, três vítimas fatais. Ela estava na foto. Não entre as vítimas, mas como uma das testemunhas. Em entrevista, disse que desconfiou do homem que entrara na agência, sentiu algo lhe sufocar e antes que o ladrão fizesse a abordagem saiu às pressas da agência. Ouviu os tiros quando estava na calçada em frente.
Percebi ali era hora de sair daquele apartamento, talvez esse negócio de sufocamento fosse contagioso e eu sabia que tinha muito ar ainda para respirar.

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