Agosto

Como toda família tem sua avelha negra, nesta não seria diferente. O filho desprezado surge pelo horizonte e causa arrepios naqueles que acreditam em sua sina. A de ser mal. Agosto é o mês, o filho, indesejado. O do cachorro louco, quando coisas ruins estão fadadas a acontecer, como se houvesse anunciação para a graça ou para a desgraça.
Augusto é meu nome e, não sei se por obra do acaso ou do divino, também sou uma espécie de ovelha negra,um indesejado. Claro que não creio nessas coisas, não nasci para atrapalhar ninguém,embora teimem em me forçar a acreditar nisso. Sou o mais novo de quatro irmãos. Dizem que tudo mudou depois que nasci, filho temporão, as entranhas já envelhecidas de minha mãe não puderam suportar a dor de me parir e ela morreu no mesmo instante em que nasci.
Queria tê-la conhecido, queria ao menos que ela tivesse a oportunidade de olhar em meus olhos que nem abertos estavam e, entre a gritaria dos médicos para salvá-la e a minha própria gritaria de recém-nascido, me dissesse que nada daquilo era minha culpa, que eu era lindo e que a faria orgulhosa. Carrego comigo a incerteza de ser uma pessoa boa, não ouvi uma palavra de conforto e incentivo. Desde aquele momento o que tenho é um olhar desconfiado e triste daqueles que dizem ser minha família.
Meu pai, a pessoa que poderia me dar o conforto que precisei naquela hora, sofreu demais com a dor de perder a pessoa que amava e eu percebo o amor que ele sentia vendo as fotografias velhas dos dois abraçados, sempre sorrindo um para o outro e pareciam felizes. Felizes de um jeito que só consigo ver nas fotos e nos filmes. Por
isso que eu não acredito muito em felicidade, é algo que acontece do lado de fora de mim, nem mesmo sei se quando estou feliz é felicidade o que sinto. Ninguém me ensinou a ser feliz e a sorrir.
Ninguém jogou em minha cara que eu era culpado por isso ou aquilo, mas com certa idade já não precisava dessas declarações escancaradas. Podia perceber que aquela penumbra que sempre me fez achar a nossa casa a mais sombria da rua ficava mais densa quando eu me aproximava. Comecei a acreditar que meus irmãos e meu pai sempre desconfiavam que a qualquer momento eu pudesse tocá-los para que algo de muito ruim acontecesse a eles. Como aconteceu a com a mulher que me teve.
Não é de estranhar então porque cresci e vivi assim, soturno, encoberto pelos cantos em que existia. Durante a rebeldia da adolescência, fiz de tudo errado um pouco, agora, depois de anos, posso achar que fosse um grito desesperado pedindo proteção e carinho. O que recebi foi a liberdade castradora que um adolescente rebelde não quer.
Por isso, saí de casa cedo. Antes de completar dezoito anos. E acho que ainda hoje não sabem que parti.
Vasculhei os escombros da Vida como um animal assustado e perdido, não sei mais enumerar como foi a sucessão das coisas que fizeram-me chegar até aqui: homem maduro, casado e bem-sucedido. Pelo meio do percurso devo ter recebido ajuda que nunca tinha tido antes, com certeza. Devo ter feito algumas coisas ruins, devo ter mentido e devo ter ajudado. Assim, passo a passo, fui adentrando ao mundo das pessoas comuns, como os vizinhos e os colegas.
Ainda não sei direito se o que sinto quando estampo meus dentes de sorriso é felicidade ou uma imitação daquilo que vejo no rosto dos outros e via nas fotos amareladas de antigamente. A pedido da minha esposa vou iniciar um tratamento psicológico porque ela um medo às vezes de coisas que digo enquanto durmo, eu não sei o que digo, ela não me conta. Diz apenas que é importante.
Não me ensinaram como é amar e o que é o amor, acho que com minha esposa eu venho lentamente progredindo nisto. Se amor é o desejo de que nada de mal ocorra com alguém, uma vontade de estar perto para proteger e se sentir protegido e querer ser um pouco melhor pra ser motivo de orgulho. Bem, acredito que estou amando.
Agosto, Agosto... eu não tenho medo de você porque eu sou um pouco você também. Mas ontem saí com um ar alegre da clínica médica. A vasectomia foi bem sucedida e não corro o risco de ter um filho para não amar.

Comentários

Janice Diniz disse…
Obrigada pelas palavras. É sempre um bom incentivo. Gostei do teu conto, muito bem articulado, bem escrito e o desfecho impactante, como os bons contos devem ter. Parabéns!


Abração

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