Para um homem simples

Outro homem se foi, outro homem simples. Simples e especial: meu avô. O Zico.
Lutava já há algum tempo contra doenças que o debilitavam mais e mais, internou-se para uma cirurgia vascular mas não aguentou. Deixou-nos com a tristeza e a saudade.
A história de meu avô não tem nada de especial, a não ser por ser a história de quem criou meu pai e que, por conseguinte, me criou. Carrego, então, a carga genética de um homem simples que nasceu no interior de São Paulo, onde começou a trabalhar cedo pois tinha uma família humilde e casou-se assim que começaram a crescer os primeiros fios de barba, como todo homem, por obrigação social, fazia. Isso no início da década de 40.
Homem simples e religioso que criou seis filhos: três homens, três mulheres. Criou-os de maneira severa - como conta meu pai -, mas naquela época não existiam os tantos PHd´s sobre a educação dos filhos que existe hoje em dia. Naquela época não se falava em traumas infantis, não havia espaço para isto, se a criança não aprendia, não era por dislexia, era por burrice; se arranjava muita briga na escola, era por falta de educação familiar, no lugar onde viviam a Psicanálise não havia chegado, não conheciam os distúrbios psíquicos. Criou os filhos com a dedicação que um pai poderia dar no lugar onde moravam: casa, comida e roupa. Tudo sem luxo, sem fartura, às vezes até faltava. Fazendo com que os filhos se tornassem homens e mulheres o quanto antes para correrem por si sós atrás do que queriam. Tudo muito diferente de hoje em que as crianças são criadas para serem sempre crianças. Mesmo com trinta anos.
Mas não é sobre métodos educacionais que quero falar.
Quero falar do homem que saiu do interior e partiu para a Capital em busca de melhores oportunidades, homem que nunca fez fortuna mas sempre ajudou a quem estivesse próximo, um homem que nunca deixou de trabalhar árdua e incansavelmente. Viu seus filhos crescidos, vivendo suas próprias vidas e começarem a formar suas próprias famílias. O homem que se foi hoje, tenho certeza, partiu sabendo ter cumprido o que lhe estava destinado a fazer.
Lembro-me dele assistindo à luta-livre numa tv velha, preto e branco, lembro-me que ele ria ao ver aqueles gordos subirem nas cordas e caírem de cotovelo sobre o mascarado que agonizava no chão. Eu assistia com ele e dizia que deveria doer aquilo. "É de mentira", me dizia.
Lembro de como ele gostava de querer agradar aos netos, sempre deixava que eu e meus primos entrassemos na Kombi que ele tinha para brincarmos de Esquadrão Classe A. E quando ele precisava sair de carro para fazer qualquer coisa deixava a gente ir no banco da frente, contrariando nossas mães e nossa avó.
Como disse, um homem que começou a trabalhar muito cedo e só parou por falta de saúde, e tanto trabalho ficava visível em suas mãos grandes e duras de calos. Mãos que largavam o seu instrumento de trabalho ao final do dia para dedicar-se então para aquilo que sempre foi uma paixão para ele: a música. Tanto que todos os seus filhos tiveram aulas de música. Ele sabia o que fazia.
Como músico, ele não foi o melhor que já conheci, mas foi, sem dúvida, o mais sincero. Tocava o violão de olhos fechados, o rosto contorcendo-se a cada nota que soava, como se a música não saísse do violão, mas de seu corpo e cada torcida de lábio fosse uma nota diferente soada.
Quando comecei também a tocar e dedilhei uns poucos acordes ele me sorriu e disse que era isso mesmo, que eu não podia parar, isso me dava ânimo para não parar e quando eu ia para lá sempre pegava o violão e, como quem não queria nada, ficava tocando onde ele estivesse para ter como recompensa aquela palavra de incentivo. Ele me mostrava seus livros de música e escolhia uma música para tocar, eu gostava de vê-lo tocar pois via naquela relação com o instrumento uma cumplicidade muda e harmoniosa, aquilo me dava paz e alegria no coração.
O homem simples de mãos duras e coração suave partiu, deixando no ar um rastro de saudade e de notas musicais que ecoarão eternamente dentro de mim.
Sebastião. Zico. Meu avô. A próxima música que tocarei é dedicada a você.

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