E agora: José!

Leio poesia e permaneço anônimo entre as cores do jardim, olhos que me cruzam, olhos que se cruzam e desejos desfeitos partem seguindo o rastro do perfume que me deixou. Concentrado na leitura, calado por trás dos óculos de armação escura, toco minha mão como quem toca um desconhecido, as unhas cortadas rentes à carne,incomoda tocar as coisas com as pontas dos dedos, a palma é áspera. Essas mãos que carregam um peso que parecem não lhe pertence,ou não deveriam.
Vem depois o ato de levantar-se do banco, deixar o colorido anônimo do jardim e cruzar ruas e andar por calçadas tortas e esburacadas, tropeçar nos mendigos que pedem e olhar para um céu que chora. Mesmo assim, é bonito esse azul, todas as coisas deveriam ser azúis, todas as cores deveriam ser o azul. Despeço-me do anonimato e cruzo pelo corredor estreito de caras amarradas do trabalho, chego em meu cubículo e me afundo nos papéis que não são meus. Percebo, então, nada é meu. Não são meus os papéis, a caneta, a calculadora, o computador, café que tomei da máquina no finaldo corredor também não é meu. O que me pertence já não está comigo, está perdido entre os dias, os meses e os anos que passaram, tanto tempo que passou e que me deixou para trás.
Ainda assim, acredito.
Pego o livro de capa escarlate e dura sobre a mesa, as folhas quase amareladas cheias de palavras e frases e sentidos que tanto fazem falta nesse cotidiano inodoro, vivo como um homem resfriado incapaz de sentir o gosto da vida. Mas ali, naquelas palavras venha talvez um sentido e
um cheiro e um gosto. O livro e as cores do jardim não combinam com o acinzentado daquilo que me rodeia, as não-expressões das pessoas que me cercam denunciam uma doença coletiva cujo remédio é desconhecido.
Por isso, corro.
Fico um tempo incontável amparado pelas palavras que se sucedem naquele livro. A história não é uma, são várias, e me dão uma coceirinha por dentro capaz de me fazer sentir criança. Vem o desejo de ser novamente um astronauta, um jogador de futebol ou apenas ser tão grande quanto o pai.
Descubro, então: fora do jardim também pode haver cor. E não é só o azul que é bonito e as coisas do lado de fora não precisam ser apenas azúis para valerem o olhar, tem o verde, o amarelo e o vermelho. Como o vermelho que fica pintado nas nuvens do céu que cede para o escuro da noite que vem chegando, trazendo de longe uma saudade grande de algo que não sei. Saudade que dá vontade de chorar um choro feliz, como caminhar numa tarde de Sol e chuva fina de Verão.
Sei que é hora de voltar para casa, deixo meus olhos perceberem as coisas da cidade por trás dos vidros do ônibus, do outro lado, a cidade que não cansa de gritar se aquieta e tudo parece sorrir.
Aí, quando chego em casa, lembro de ter saído com um gosto amargo na boca de uma discussão tão inútil quanto o cinza que deixei para trás, vejo minha mulher e seu sorriso, ela acena positiva com a cabeça, aproxima-se lenta, aninha seu rosto em meu peito e depois se afasta, olhando fundo nos meus olhos. Pega com sua mão pequena e delicada, a minha, que parece não mais pesar, e leva até seu ventre. A noite é calma e antes de dormir já sei que seu nome será José.

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