Desnecessários - uma história besta


Era primavera do primeiro ano em que morava só. Tinha dado o passo definitivo para a liberdade e o desespero. Nada havia apara preencher os espaços que lhe arrebatavam os olhos, fatava dinheiro para os móveis e já vendera todo o tíquete alimentação do mês para pagar o aluguel. Passava o dia arrotando sanduíche de mortadela.
Numa noite quente daquelas, abriu a janela e olhou para cima: um céu de Lua Nova e uma mulher trambém olhando pela janela, e para a Lua. Ela voltou-se, olhando para ele, não sabia se sorria, era escuro e podia não fazer diferença. Voltou a cabeça para dentro, feito tartaruga em seu casco.
Naquela noite, sonhou os sonhos de infância.
Corria por um campo aberto que tinha uma grama tão verde que parecia falsa, sentia o cheiro fresco do matinho depois do orvalho. Subia um morro e, chegando ao topo, do outro lado, um grande lago de água mansa repousava. Desceu correndo a segunda parte do morro, zunia em seus ouvidos o vento, fechou os olhos e estendeu os braços como se fosse de encontro àquilo que mais desejava na vida e que estava lá para lhe aguardar. Chegou a beira do lago, tocou a água fria e acordou.
Rosa era seu nome. A moça que morava dois andares acima do seu. Tinha uma pinta de Marilyn Monroe no rosto e os olhos castanhos escuros. Pequena e magra, a pele branca, levemente rósea nas bochechas. Rosa, melhor nome impossível.
Encontraram-se na porta de entrada do prédio, trocaram um cumprimento formal de bom dia e saíram, ele para esquerda, ela para direita. Três bairros à frente, encontraram-se novamente, trocaram um sorriso simples e tiveram a mesma dúvida: como chegou até aqui. Ela, de carro; ele, carona.
Ele tinha uma história daquelas que são contadas às pressas porque o próprio protagonista não fazia questão alguma de prolongar a sua mesmice. Uma vida comum, sem atropelamentos e peripécias. Relacionamentos pouco profundos e nenhum inimigo cativo. Um salário baixo e responsabilidade no trabalho tão baixa quanto. Mas não havia queixas também, nem dele, nem dos outros.
Ela queria algo além do que via, acordava diariamente com a sensação de estar numa vida que não era verdadeiramente a dela, como se estivesse num sonho em que acordaria para a vida real, com uma profissão importante, uma casa espaçosa, limpa e clara. Um marido, ou noivo, ou namorado, ou qualquer outro relacionamento que fosse mais relevante que uma troca de beijos e fluídos corporais.
Foi num domingo, quando se encontraram na padaria próxima ao prédio onde moravam, que surgiu a primeira conversa. Não vou relatar o diálogo porque foi dos mais corriqueiros, desses de quando se fala sobre coisas genéricas com alguém até chegar num assunto em comum. Tinham pouco em comum, talvez apenas um desejo brando de conhecer um o corpo do outro. Ambos gostavam de sexo, ao menos. Mas o sexo não aconteceu naquele dia, nem naquele mês em que se cruzavam quase todos os dias pela manhã e, às vezes, no fim da tarde também, sempre em frente ao prédio.
Aconteceu, como se fosse inevitável, no mês seguinte, depois de terem trocados outros diálogos inúteis. Acabaram na cama dele, com uma sensação de alívio e de vazio. Nada mudaria um na vida do outro, haviam percebido que não era um que mudaria a vida do outro, mais uma vez o tiro em busca do grande amor ou de um grande acontecimento amoroso na vida não se realizara.
Ainda se viram e transaram e trocaram beijos e carinhos, mas sempre com a certeza de que logo viria um aceno para nunca mais. Desnecessários, mas com um prazer em conhecer.

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