Memento Mori

O texto a seguir é uma livre tradução que fiz do conto "Memento Mori", que inspirou o roteiro do filme Amnésia de Christopher Nolan. O texto original é de autoria de Jonathan Nolan, irmão do diretor do filme. A reprodução total ou parcial deste texto é permitida desde que seja citada a fonte.


Memento Mori

1

"What like a bullet can undeceive!"

- Herman Melville

Sua esposa sempre costumava dizer "você se atrasaria até para seu próprio funeral". Lembra-se disso? Suas piadinhas por você ter sido tão lesado - sempre atrasado, sempre esquecendo coisas, mesmo antes do incidente.

Você deve estar imaginando se, neste exato momento, não está atrasado para o funeral dela.

Você esteve lá, você tem certeza disto. Esta é a cena a saber - o tal grudado na parede perto da porta. Não é comum tirar fotos num funeral, mas alguém, seus médicos, EU suponho, sabiam que você não se lembraria. Eles fizeram a coisa direitinho e pararam ali, próximos à porta, então você não pôde ajudar - mas enxerga toda hora - você se levantou para descobrir onde ela estava.

O cara na foto, o com as flores? Este é você. E o que você está fazendo? Está lendo a lápide, tentando adivinhar de quem é o funeral em que você está, assim como você está lendo agora, tentando adivinhar porque alguém permanece naquele quadro perto da sua porta. Mas por que se incomodar lendo algo que você não lembra?

Ela se foi, se foi pra valer, e você deve estar se remoendo agora, ouvindo o noticiário. Acredite em mim, eu sei como você se sente. Você, provavelmente, é um náufrago. Mas dê cinco minutos, talvez dez. Talvez leve uma boa meia hora antes que você esqueça.

Mas você esquecerá - eu garanto. Mais alguns minutos e você estará de olho na porta, procurando-a novamente, desesperando-se quando achar a foto. Quantas vezes você terá que ouvir o noticiário antes que uma parte do seu corpo, outra que não esse seu cérebro zoado, comece a lembrar?

Aflição interminável, fúria interminável. Inúteis sem direção. Talvez você não entenda nada do que aconteceu. Nem eu posso dizer que entendi. Amnésia em sentido oposto. Isto é o que as siglas dizem. Mal de "CRS". Seu palpite é tão bom quanto o meu..

Talvez você não entenda o que aconteceu a você. Mas você se lembra do que aconteceu a ELA, não lembra? Os médicos não querem falar a respeito. Eles não respondem minhas perguntas. Eles não acham que seja bom para um homem em suas condições ouvir sobre certas coisas. Mas você tem a lembrança suficiente, não tem? Você se lembra do rosto dele.

Por isso é que estou escrevendo para você. Inutilmente, talvez. Eu não sei quantas vezes você terá que ler isto antes que me ouça. Eu nem sei há quanto tempo você está trancado neste quarto. Assim como você. Mas sua vantagem nos esquecimentos é que você esquecerá de se descrever como uma causa perdida.

Cedo ou tarde você irá querer fazer algo a respeito. E quando o fizer você terá que acreditar em mim, porque eu sou o único que pode te ajudar.

2

EARL ABRE UM OLHO depois do outro para ver um pedaço de teto com azulejos brancos interrompidos por um recado escrito à mão colado bem em cima de sua cabeça, grande o bastante para ele ler da cama. Um rádio-relógio toca em algum lugar. Ele lê o que está escrito, pisca, lê de novo, e dá uma olhada no quarto.

É um quarto branco, sufocantemente branco, das paredes e cortinas até as mobílias institucionais e a colcha. O rádio-relógio toca da mesa branca sob a janela com as cortinas brancas. Earl, a esta altura, provavelmente nota que está descansando numa consoladora brancura. Ele já está usando um roupão e chinelos.

Ele volta a deitar e lê o recado grudado no teto de novo. Diz, em blocos crus de letras maiúsculas, ESTE É SEU QUARTO. É UM QUARTO NUM HOSPITAL. É ONDE VOCÊ MORA AGORA.

Earl se levanta e dá uma olhada ao redor. O quarto é grande para um de hospital - linóleos vazios estendem-se da cama para três direções. Duas porta e uma janela. A vista não ajuda muito também - um close de árvores no centro de um pedaço de gramado muito bem cuidado que termina numa alameda de piche. As árvores, com exceção da esverdeada, estão desfolhadas - início de primavera ou fim de outono, um ou outro.

Cada polegada da mesa está coberto com notas em "Post- it", blocos de anotações legítimos, listas de impressão nítida, textos psicológicos, fotos em pedaços. Sobre a bagunça tem um jogo de palavras cruzadas pela metade. O rádio-relógio está sobre uma pilha de jornais dobrados. Earl bate no botão "soneca" e pega um cigarro do maço preso à manga de seu roupão. Tateia os bolsos vazios de seu pijama procurando fogo. Vasculha os papéis sobre a mesa, dá uma espiada nas gavetas. Eventualmente ele encontra uma caixa de fósforos de cozinha junto à parede próxima à janela. Outro recado está bem acima da caixa. Diz em gritantes letras amarelas, CIGARROS? PEGUE OS MAIS FRACOS ANTES, ESTÚPIDO.

Earl ri do recado, acende seu cigarro, e dá uma longa tragada. Preso à janela, à sua frente está outro pedaço de papel solto designado: SEU CRONOGRAMA

É tabelado por horas, cada hora, em blocos: 10 da noite a 8 da manhã está legendado VOLTE A DORMIR. Earl consulta o rádio-relógio: 8:15. Tem luz do lado de fora, deve ser de manhã. Ele olha seu relógio: 10:30. Ele coloca o relógio perto do ouvido e ouve. Dá uma ou duas voltas nos ponteiros para ajustar com o rádio-relógio.

De acordo com o cronograma, todo o período de 8:00 até 8:30 foi legendado ESCOVE OS DENTES. Earl riu de novo e foi até o banheiro.

A janela do banheiro está aberta. Conforme ele agita os braços para manter-se aquecido, vê o cinzeiro no parapeito. Um cigarro está largado no cinzeiro, queimando calmamente formando uma cinza do tamanho de um dedo. Ele franze as sobrancelhas, apaga a velha bituca, e substitui por uma nova.

A escova de dente já foi agraciada com uma borrada de pasta branca. torneira é do tipo com botão de apertar - uma dose de água em cada cutucada. Earl aperta a escova até suas bochechas e a retira e continua o movimento enquanto abre o armário de medicamentos. As prateleiras estão abarrotadas com frascos, tipo amostra grátis, de vitaminas, aspirinas, antidiuréticos. O flúor é também do tipo amostra grátis, líquido azul numa garrafa de plástico selado. Apenas a pasta de dente é de tamanho normal. Earl cospe a pasta pra fora da boca e coloca o flúor. Conforme ele deixa a escova de dente próximo à pasta, percebe um pedacinho de papel apertado entre a estante de vidro e o aço que recobre o armário de medicamentos. Cospe o espumante fluído azul na pia e cutuca a torneira por mais água para jogar tudo fora. Fecha o armário e sorri para seu reflexo no espelho.

"Quem precisa de meia hora para escovar o dente?"

O papel estava minusculamente dobrado, com a mesma precisão que um bilhetinho de amor infantil. Earl desdobrou-o e o alisou contra o espelho. Lia-se --

SE VOCÊ AINDA PODE LER ISTO, ENTÃO VOCÊ É UM PUTA COVARDE.

Earl ficou estupefato diante do papel, e leu-o de novo. Ele o virou. Atrás estava --

OBS: APÓS LER ISTO, ESCONDA-O NOVAMENTE.

Earl releu cada um dos lados, tornou a dobrar o bilhete até seu tamanho original e colocou-o embaixo da pasta de dentes.

Então ele percebeu a cicatriz. Começava bem abaixo da orelha, uma linha irregular e grossa, e desaparecia abruptamente, muito fina. Earl girou a cabeça e ficou olhando com o canto do olho para seguir a progressão da cicatriz. Ele percorreu seu caminho com o dedo, então olhou de volta para o cigarro queimando no cinzeiro. Um pensamento o apanhou e ele saiu do banheiro.

Ele se flagra na porta do quarto, uma mão na maçaneta. Duas fotos estão presas na parede, perto da porta. A atenção de Earl primeiro se prende à radiografia, uma tira brilhante e negra com quatro imagens do crânio de alguém. Em caneta marca-texto está intitulado SEU CÉREBRO. Earl encara a foto. Círculos concêntricos em cores diferentes. Ele pode marcar as grandes órbitas de seus olhos e, atrás delas, os lobos gêmeos de seu cérebro. Leves rugas, círculos, semicírculos. Mas bem no meio da sua cabeça, circulado com marca-texto, aprofundado na parte de trás de seu pescoço, como uma mancha num damasco, tem algo diferente. Deformado, quebrado, mas inconfundível. Uma mancha escura, no formato de uma flor, bem ali, no meio do seu cérebro.

Ele se curva para olhar a outra foto. É a fotografia de um homem segurando flores, parado sobre um túmulo. O homem está curvado, lendo a lápide. Por um momento isto parece uma sala de espelhos ou o esboço inicial do infinito: o Homem curvado, olhando o homem, curvado, lendo a lápide. Earl olha para a foto por muito tempo. Talvez tenha começado a chorar. Talvez apenas permanecia calado em frente à foto. Finalmente, ele faz o caminho de volta à cama, deita-se, cerra os olhos, tenta dormir.

O cigarro queimando no banheiro. Um circuito no rádio-relógio faz contagem regressiva a partir do dez, e começa a tocar de novo.

Earl abre um olho depois do outro para ver um pedaço de teto com azulejos brancos interrompidos por um recado escrito à mão colado bem em cima de sua cabeça, grande o bastante para ele ler da cama.

3

Você não pode ter mais uma vida normal. Você precisa saber disto. Como você pode ter uma namorada se você não lembrar o nome dela? Não pode ter filhos, a não ser que você queria que eles cresçam com um pai que não os reconheçam. Com certeza não consegue ficar num emprego. Não são muitos os profissionais por aí estimados por seu esquecimento. Prostituição, talvez. Política, certamente.

Não. Sua vida acabou. Você é um cara morto. A única coisa que os médicos esperam fazer é te ensinar a ser menos que um fardo para os receituários. E eles provavelmente nunca te deixarão ir para casa, onde quer que ela seja.

Então a questão não é "ser ou não ser", porque você não é. A questão é se você quer fazer algo a respeito. Se vingança te importa.

Acontece com a maioria das pessoas. Por umas poucas semanas, eles marcam a terra, eles planejam, eles tiram as medidas para nivelar as coisas. Mas a passagem do tempo é o suficiente para sucumbir o impulso inicial. O tempo é um ladrão, não é o que dizem? E o tempo acaba convencendo a maioria de nós que perdão é uma virtude. Convenientemente, covardia e perdão parecem a mesma coisa de certo ponto de vista. Tempo rouba sua força.

Se tempo e medo não são suficientes para dissuadir as pessoas de suas vinganças, pelo menos elas terão sempre a segurança, balançam suas cabeças calmamente e dizem, NÓS entendemos, mas você é o homem apropriado para deixar essas coisas pra lá. De superar estas coisas. De não se rebaixar ao nível deles. E além disso, digo com autoridade, se você tentar alguma coisa estúpida, nós te trancaremos num quartinho.

Mas eles já te colocaram no quarto, não foi? Só que eles não prestam muita atenção em você nem botam uma vigilância muito rigorosa porque você é um aleijado. Um cadáver. Um vegetal que provavelmente não se lembraria de comer ou cagar se não tivesse alguém pra te lembrar.

E conforme a passagem do tempo, bem, isto não se aplica mais a você, não é? São aqueles mesmos dez minutos, repetidas vezes. Então como você pode perdoar se você não recorda para esquecer?

Você devia ser o tipo "deixa pra lá", acertei? Antes. Mas você não é mais aquele homem. Nem metade dele. Você é uma fração; você é o homem dez-minutos.

Claro, a fraqueza é grande. O primeiro impulso. Você deve preferir sentar no seu quartinho e chorar. Viver na sua coleção restrita de memórias, polindo carinhosamente cada uma delas. Vida meia-boca colocada atrás de um vidro e definhando sobre uma cartolina como uma coleção de insetos exóticos. Você gostaria de viver atrás deste vidro, não é? Preservado em formol.

Você gostaria de viver assim mas não pode, certo? Não pode por causa da última aquisição para sua coleção. A última coisa que você lembra. O rosto dele. O rosto dele e sua esposa, te pedindo ajuda com os olhos.

E talvez seja aí onde você possa descansar quando tudo acabar. Sua pequena coleção. Eles podem te trancar em outro quartinho e você pode viver o resto da sua vida no passado. Mas só se você tiver um pedacinho de papel na mão dizendo que você o pegou.

Você sabe que estou certo. Você sabe que tem muito trabalho a fazer. Pode parecer impossível, mas tenho certeza que se cada um fizer sua parte, vamos pensar em como fazer. Mas você não tem muito tempo. Tem apenas cerca de dez minutos, pra dizer a verdade. Daí começa tudo de novo. Então faça alguma coisa com o tempo que você tem.

4

EARL ABRE SEUS OLHOS e pisca na escuridão. O rádio-relógio toca. Marca 3:20, e o luar vazado pela janela significa que deve ser madrugada. Earl tateia em busca do abajur, quase se debatendo. Luz incandescente preenche o ambiente, pintando o metal da mobília de amarelo, as paredes de amarelo, a colcha também. Ele se deita e olha pra cima, para o pedaço de teto de azulejos amarelos sobre si, interrompidos por um recado escrito à mão grudado no teto. Ele lê o que diz duas, talvez três vezes, pisca os olhos para o quarto a seu redor.

É um quarto nu. Institucional, talvez. Tem uma mesa logo abaixo da janela. A mesa está vazia a não ser pelo gritante rádio-relógio. Earl percebe, neste momento, que está totalmente vestido. Até os sapatos colocados sob o lençol. Salta da cama e vai até a mesa. Nada no quarto sugeria que alguém vive ali, ou que já tinha vivido, exceto por pedaços de fita grudados, espalhados aqui e ali na parede. Nenhum quadro, nenhum livro, nada. Pela janela, ele pode ver a lua cheia iluminando o gramado bem cuidado.

Earl bate no botão "soneca" do rádio-relógio e encara por um momento as duas chaves grudadas na palma de sua mão. Ele sente a picada da fita enquanto vasculha as gavetas vazias. No bolso esquerdo da sua jaqueta, ele encontra um maço de notas de cem dólares e uma carta selada num envelope. Ele checa o resto do quarto e o banheiro. Pedaços de fita, bitucas de cigarro. Nada mais.

Earl distraidamente brinca com o inchaço da cicatriz em seu pescoço e volta para a cama. Deita-se de costas e fixa os olhos no teto, para o recado grudado nele. O recado diz, LEVANTE-SE, SAIA DAÍ AGORA. ESSA GENTE ESTÁ TENTANDO TE MATAR.

Earl fecha os olhos.

5

Eles tentaram te ensinar a fazer listagens no primário, lembra? Naqueles dias quando suas tarefas diárias ficavam na palma da sua mão. E se suas anotações saíssem no banho, bem, daí eles não teriam cumprido a lição. Sem direção, eles disseram. Sem disciplina. Então eles tentaram fazer você escrever as coisas em algum lugar mais confiável.

Claro, seus professores primários estariam se mijando de tanto rir se pudessem te ver agora. Porque você se tornou o produto exato das suas aulas burocráticas. Porque você nem consegue mijar sem consultar uma de suas anotações.

Eles estavam certos. Anotações são o único jeito de sair da bagunça.

Esta é a verdade: As pessoas, mesmos as normais, nunca são nada sem uma lista de atribuições. Não é tão simples. Estamos à mercê do sistema límbico, nuvens de eletricidade pairando pelo cérebro. Todo homem é domesticado nas frações de vinte e quatro horas, e de novo, no limite das vinte e quatro horas. É uma pantomima diária, um homem cedendo controle para o outro: uma coxia abarrotada de velhos mercenários clamando por sua vez ao holofote. Toda semana, todo dia. O homem irritado dá a mão para o mal-humorado, e abraça o viciado em sexo, o introvertido, o tradicionalista. Todo homem é uma multidão, um monte de idiotas diferentes.

Esta é a tragédia da vida. Porque por alguns minutos de cada dia, todo homem se torna um gênio. Momentos de claridade, revelação, chame como quiser. As nuvens se dissipam, os planetas se alinham, e tudo se torna óbvio. Eu deveria parar de fumar, talvez, ou agora sei como me tornar milionário, ou esta e esta são as chaves para a alegria eterna. Esta é verdade miserável. Por alguns momentos, os segredos do universo se abrem para nós. A vida é uma armadilha de falatório barato.

Mas aí o gênio, o sábio, tem que ceder o controle para o próxima cara da fila, na maioria das vezes é o cara que só quer comer batatas fritas, e a revelação, brilhantismo e salvação são passados para um imbecil ou um hedonista ou um narcoléptico.

O único jeito de sair desta bagunça, com certeza, é tomar providências para certificar-se que você controla as idiotices em que você se transformou. Pegar seus idiotas, um por um, e liderá-los. A melhor forma de fazer isto é fazer registros.

É como uma carta que se escreve para si mesmo. Um planejamento, feito pelo cara que viu a luz, feito com passos simples o bastante para que o resto dos idiotas possam entender. Siga os estágios de um até cem. Repita, se necessário.

Seu problema é um pouco mais agudo, talvez, mas basicamente é a mesma coisa.

É como aquele troço de computador, a sala Chinesa. Lembra daquilo? Um cara senta-se numa sala, descendo cartas com letras escritas numa linguagem que ele não entende, vai descendo as cartas com uma letra por vez, de acordo com a seqüência das instruções de outra pessoa. As cartas supostamente devem formar uma piada em chinês. O cara não fala chinês, é claro. Ele apenas segue as instruções.

Há algumas diferenças óbvias no seu caso, é claro: Você saiu fora da sala que eles te puseram, então toda a aventura vai ter que ser ambulante. E o cara que dá as instruções - o cara é você também, só que uma versão anterior de você. E a piada que estão contando, bem, tem o seu charme. Eu só acho difícil de alguém achar engraçado.

Então, a idéia é esta. Tudo o que você tem que fazer é seguir as instruções. Como subir numa escada de mão ou descer do sótão. Um passo de cada vez. Seguindo os registros. Simples.

E o segredo, é claro, para qualquer registro é mantê-lo num lugar onde você pode ver.

6

ELE PODE OUVIR O ZUMBIDO através de suas pálpebras. Insistente. Ele sai caçando o rádio-relógio, mas não consegue mexer seu braço.

Earl abre seus olhos e vê um homenzarrão curvado sobre si. O homem o observa de cima a baixo, contrariado, e termina o trabalho. Earl olha ao redor. Muito escuro para um consultório médico.

A dor transborda em seu cérebro, bloqueando suas dúvidas. Ele se contorce de novo, tentando mexer o antebraço, aquele que ele sente como se queimasse. O braço não se move, mas o homem lhe dá outro olhar de raiva. Earl se arruma na cadeira para poder ver o que há acima da cabeça do homem.

A náusea e a dor vêm juntas da arma na mão do homem - uma arma com uma agulha onde o cano deveria estar. A agulha está perfurando a carne do antebraço de Earl, deixando uma trilha de letras em rajadas para trás.

Earl tenta se recompor para ter uma melhor visão, para ler as letras em seu braço, mas não consegue. Ele se recosta e olha para o teto.

O tatuador desliga o barulho, cobre o antebraço de Earl com um pedaço de gaze, e perambula até a parte de trás para trazer um panfleto descrevendo o que fazer em caso de infecção. Talvez mais tarde ele contará à sua esposa sobre o cara e sua pequena anotação. Talvez sua esposa o convencerá a chamar a polícia.

Earl olha seu braço. As letras surgem da pele, um pouco lacrimejosas. Elas correm desde a pulseira do relógio de Earl até seu cotovelo. Earl pisca ao ver a mensagem e lê de novo. Diz, em cuidadosas letras maiúsculas, EU ESTUPREI E MATEI SUA ESPOSA.

7

Hoje é seu aniversário, então eu te trouxe um presentinho. Eu deveria ter trazido uma cerveja, mas quem sabe onde acabaria?

No lugar disto, eu te trouxe um sino. Acho que tive que empenhar seu relógio para comprá-lo, mas pra que diabos você precisa de um relógio?

Você deve estar se perguntando, Por que um sino? Na verdade, tento adivinhar se você não se faz esta pergunta toda vez que encontra o sino no seu bolso. Muitas daquelas letras agora. Muitas pra você procurar cada vez que quer uma resposta pra qualquer perguntinha.

É uma piada, de verdade. Uma piada de cotidiano. Mas pense deste jeito: eu não estou rindo de você, estou rindo com você.

Eu gosto de pensar que toda vez que você tira o sino de seu bolso pensa, Por que eu tenho este sino? Uma pequena parte de você, um pedacinho do seu cérebro zoado, vai se lembrar e rir, como eu estou rindo agora.

Além disso, você sabe a resposta. É algo que você aprendeu antes. Então se você pensar nisto, você saberá.

De volta aos velhos dias, as pessoas tinham a obsessão do medo de serem enterradas vivas. Lembra-se agora? A ciência médica não era bem a que temos hoje, não era incomum as pessoas subitamente acordarem num caixote. Então os ricos tinham em seus caixões tubos de respiração. Tubinhos que percorriam toda a lama até o solo pra que se alguém acordasse, quando supostamente não era pra acordar, não iria morrer por falta de oxigênio. Agora, eles devem ter testado isto e perceberam que você poderia gritar até a rouquidão pelo tubo, mas o tubo era muito estreito para ser barulhento. Não era o suficiente para chamar atenção, no fim das contas. Então uma corda foi posta no tubo e amarrada num sininho preso à lápide. Se um morto voltasse à vida, tudo o que ele tinha que fazer era tocar o sininho até alguém vir e descavá-lo.

Estou rindo agora, imaginando você num ônibus ou talvez numa lanchonete, vasculhando seu bolso e encontrando seu sininho e se perguntando de onde viera, por que o tem. Talvez você nunca o tocará.

Feliz aniversário, meu chapa.

Eu não sei quem pensou na solução para nossos problemas mútuos, então eu não nem sei a quem congratular você ou eu. Um pouco de mudança no estilo de vida, aceite, mas uma elegante solução.

Procure a resposta em você.

Soa como algo saído de uma carta de tarô. Não sei quando você teve a idéias, mas eu tiro meu chapéu. Não que você saiba de que diabos estou falando. Mas, honestamente, uma verdadeira tempestade cerebral. Apesar de tudo, todo mundo precisa de espelhos para lembrar quem é. Você não é diferente.

8

A VOZ MECÂNICA PAUSA, e começa a repetir. Diz, "São 8 da manhã. Esta é uma chamada de cortesia." Earl abre os olhos e recoloca o fone no gancho. O telefone é parafusado a uma cabeceira de compensado barato que passa pela parte detrás da cama, contorna o canto do quarto e termina no minibar. A TV ainda está ligada, tiras coloridas dividem a tela. Earl deita-se e surpreende-se, mais velho, bronzeado, o cabelo saltando de sua cabeça como raios solares. O espelho no teto está partido, a prata se ofuscando em rugas. Earl continua a se olhar, atônito pelo que vê. Está totalmente vestido, mas as roupas são velhas, puída em alguns pontos.

Earl sente a marca familiar do seu relógio em seu pulso esquerdo, mas não está lá. Ele observa seu braço pelo espelho. Está sem pêlos e a pele mudou para um bronzeado uniforme, como se ele nunca tivesse usado um relógio. A pele possui a mesma coloração exceto por uma sólida seta negra na parte de dentro do pulso de Earl, apontando para manga de sua camisa. Ele observa a seta por um momento. Talvez ele não tente mais esfregá-la. Ele ergue a manga.

A seta aponta para uma frase tatuado ao longo da parte interna do braço de Earl. Earl lê a frase uma, talvez duas vezes. Outra seta no começo da frase, aponta para mais acima no braço de Earl, desaparecendo sob a manga levantada. Ele desabotoa a camisa.

Olhando para seu peito, ele pode visualizar as formas mas não consegue focalizá-las, então ele olha pelo espelho, acima dele.

A seta sobe o braço de Earl, atravessa o ombro, e desce pelo seu tronco, terminando na gravura do rosto de um homem que ocupada a maior parte de seu peito. O rosto é de um homem grande, calvo, com bigode e costeleta. É um rosto peculiar, mas como nos retratos falados policiais, tem alguma coisa de irreal.

O resto de seu tronco está coberto por palavras, frases, pedaços de informação, e instruções, todas escritas de trás para frente em Earl, na ordem certa ao espelho.

Earl senta-se, abotoa a camisa, e vai até a mesa. Ele pega caneta e um pedaço de papel da gaveta, senta, e começa a escrever.

9

Eu não sei onde você estará quando ler isto. Nem sei se você vai se incomodar de ler isto. Acho que você não precisa.

É uma vergonha, mesmo, que você e eu nunca nos encontraremos. Mas, como a música diz, "Quando você ler este recado, já terei partido."

Estamos tão perto agora. É o que parece. Tantas peças para juntar, soletrar. Acho que é só uma questão de tempo para você o encontrar.

Quem sabe o que fizemos pra chegar aqui? Deve ser uma história e tanto, se pelo menos você pudesse lembrar de alguma coisa. Acho que seja melhor que você não possa.

Acabei de pensar numa coisa. Talvez você a ache útil.

Todos estão esperando pelo fim, mas e se ele já passou por nós? E se a última brincadeira do Dia do Julgamento já veio e foi e nós nem nos ligamos? Apocalipse se aproxima em quietude; os escolhidos são alçados ao Paraíso, e o resto de nós, os que falharam no teste, seguem o caminho, esquecidos. Já morto, excursionando por aí após os deuses já terem parado de marcar os pontos, permanecendo otimista sobre o futuro.

Se essa for a verdade, então não importa o que você faça. Não há expectativas. Se você não o encontrar, não vai importar, porque nada importa. E se você o encontrar, pode matá-lo sem se preocupar com as conseqüências. Porque não há conseqüências.

É sobre isto que estou pensando agora, nesta quartinho em frangalhos. Quadros emoldurados de navios na parede. Eu não sei, obviamente, mas se tivesse que palpitar, diria que estivemos em algum lugar litorâneo. Se você está imaginando porque seu braço esquerdo está cinco vezes mais queimado que o direito, nem sei o que te dizer. Acho que estivemos dirigindo um bocado. E, não, eu não sei o que aconteceu com seu relógio.

E todos estas chaves: Não faço idéia. Não reconheço nenhuma. Chaves de carro e de casas e chavinhas de cadeados. Onde estivemos metidos?

Imagino se ele se sentirá idiota quem você o encontrar. Capturado pelo homem dez-minutos. Assassinado por um vegetal.

Vou embora daqui a pouco. Vou largar a caneta, fechar meus olhos, e daí você pode ler isto se quiser.

Só quero que saiba que estou orgulhoso de você. Nada que importa deixou de ser dito. Nada preciso deixou de ser feito.

10

OS OLHOS DE EARL ESTÃO BEM ABERTOS, olhando pela janela do carro. Olhos sorridentes. Sorrindo através da janela para a multidão reunida pela rua. O corpo vagarosamente se esvaziando pela calçada caindo no bueiro.

Um cara de família, rosto pra baixo, olhos abertos. Careca. Na morte, como nos retratos falados policias, os rostos tendem a serem os mesmos. Este é definitivamente alguém em particular. Mas na verdade, poderia ser qualquer um.

Earl permanece a sorrir para o corpo conforme o carro se distancia do meio-fio. O carro? Quem vai saber? Talvez um viatura da polícia. Talvez só um táxi.

Conforme o carro é engolido no tráfego, os olhos de Earl continuam a brilhar na noite, observando o corpo desaparecendo no círculo de pedestres aflitos. Ele ri para si mesmo enquanto o carro continua a aumentar a distância entre ele e a platéia cada vez maior.

O sorriso de Earl diminui um pouco. Algo lhe ocorreu. Ele começa a apalpar os bolsos, desdenhosamente no começo, como um homem procurando suas chaves, depois um pouco mais desesperado. Talvez seu progresso seja impedido pelo par de algemas. Ele começa a esvaziar os bolsos deixando o conteúdo ao lado, no banco. Algum dinheiro. Um molho de chaves. Pedaços de papel.

Um objeto metálico e redondo rola de seu bolso pelo banco de vinil. Earl está frenético agora. Ele bate na divisória de plástico entre ele e o motorista, implorando ao homem uma caneta. Talvez o motorista do táxi não fale muito bem o inglês. Talvez o policial não tem o hábito de falar com os suspeitos. De qualquer forma, a divisória entre o homem na frente e o homem atrás permanece fechada. A caneta não apareceu.

O carro passa por um túnel, e Earl pisca para seu reflexo no espelho retrovisor. Está calmo. O motorista faz outra curva, e o objeto de metal desliza, com o resto das coisas, até a perna de Earl, fazendo um barulhinho. Ele pega o objeto para dar uma olhada, está curioso. É um sininho. Um sininho de metal. Inscrito nela está seu nome e uma lista de datas. Ele reconhece a primeira: o ano no qual nasceu. Mas a segunda data não significa nada pra ele. Nada mesmo.

Conforme ele gira o sino em suas mãos, percebe o espaço vazio em seu pulso onde seu relógio costumava ficar. No lugar tem uma pequena seta, apontando para seu braço. Earl olha pra seta, e começa a arregaçar a manga da camisa.

11

"Você se atrasaria até para seu próprio funeral", ela diria. Lembra? Quanto mais eu penso sobre isso, mais banal parece. Que tipo de idiota, afinal, está com pressa de ver o fim de sua própria história?

E como eu poderia saber se eu estaria atrasado, oras? Eu não tenho mais relógio. Eu não sei o que nós fizemos com ele.

E pra que diabos você precisa de um relógio? É uma antiguidade. Peso-morto enrolado em seu pulso. Símbolo do você de antigamente. O você que acreditava em tempo.

Não. Rasgue aquilo. A sua descrença no tempo não é maior do que a descrença do tempo em relação a você. E quem precisa dele? Quem quer ser um daqueles tolos a acreditar na certeza de um futuro, na segurança de que um momento vem depois do outro nos quais eles sentiram alguma coisa poderosa? Vivendo no momento seguinte, no qual eles não sentem nada. Acreditando na mentira que o tempo vai curar todas as feridas - que é apenas um modo legal de dizer que o tempo nos mata.

Mas você é diferente. Você é mais completo. Tempo significa três coisas para a maioria das pessoas, mas pra você, pra nós, apenas uma. Uma singularidade. Um momento. Este momento. Como se você fosse o centro do relógio, o eixo em que giram os ponteiros. O tempo se desloca por você, mas nunca te desloca. Ele perdeu a habilidade de te afetar. O que é que eles dizem? Que o tempo é um ladrão? Mas não pra você. Feche seus olhos e você pode começar tudo de novo. Conjure a emoção propícia, fresco como rosas.

O tempo é um absurdo. Uma abstração. A única coisa que importa é este momento. Este momento um milhão de vezes repetidas. Você tem que acreditar em mim. Se este momento for repetido o suficiente, se você continuar tentando - e você precisa continuar tentando - você acabará seguindo para o próximo item no seu registro.


Comentários

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