Boa sorte

Faltava pouco para a chegada, uns dois dias. Nesses dias, ele não conseguia dormir direito, comer direito, pensar direito, viver direito. Se é que algum dia soube viver direito. Ocupava o tempo percorrendo o pequeno corredor do apartamento, indo até o mercado ver os mesmos produtos e não levar nenhum. Tinha parado de fumar, mas abrira um exceção, quase dois maços por dia. Isso lhe rendeu um tosse seca, rascante que tentava amenizar tomando muita água. Com bebidas tinha parado, isso era definitivo.
"Esperar é uma droga não viciante", pensava. Impaciente, como um bom ariano, folheava o jornal que era entregue pela manhã, religiosamente, em apartamento. O incomum é que recebia aquele jornal há mais de um ano e nunca fez pedido de assinatura, nunca nenhum vizinho o interpelou reclamando seu jornal roubado, nem alguém de telemarketing ligou para oferecer ou cobrar a assinatura. Havia coisas assim que aconteciam com ele, coisas que eram boas do jeito que se pensa: "porque isso não acontece comigo?"
Com ele acontecia, mas era como se não, quando ganhou o carro num sorteio que nem queria ter participado, quando recebeu a promoção no emprego quando pensava que seria despedido por não fazer suas tarefas direito, quando faltou à faculdade num dia de prova final, mas o professor também se ausentara por estar doente. O acúmulo de coisas boas que lhe aconteciam era tanto que, para ele, não passavam de coisas comuns da Vida. Achava, talvez, que todos tivessem aquilo que se chama sorte.
Apesar disso tudo, era difícil ver m sorriso em seu rosto, fosse nas segundas pela manhã ou nos sábados à noite. Amigos, tinha poucos. Família, mantinha um distância que considerava saudável. Sozinho, colecionava ímã de geladeira com o anúncio de pizzarias, entrega de comidas chinesas, tailandesas, italianas, árabes. Às vezes vinha uma vontade de largar tudo, o apartamento, as roupas, tudo. Pegar o dinheiro que vinha juntando, não sabia pra quê, e cair fora. Ser outra pessoa em outro lugar, chegou até a preparar a mala, umas duas vezes, mas, antes de chegar à porta do quarto, voltava atrás, pensava que mesmo indo pro lugar mais distante do mundo, aquela sua sorte, aquela sua sina ainda estariam lá, lhe impregnando a alma.
Mas essa idéia de fugir desapareceu, tudo depois que conheceu a mulher mais bonita que já tinha conhecido. Uma morena de olhos castanhos, lábios carnudos e fala mansa. Morava em outro Estado, conheceram-se numa reunião nacional da empresa em que trabalhavam. No momento do encontro, nem ele, nem ela disseram palavra, não precisavam. Na sala em que estavam começoua pairar no ar um aroma diferente do que tinha sentido em toda Vida, algo bom demais para ser descrito, quando a gente se apaixona, tudo fica mais bonito, ele pensou. Não sabia o que era paixão, sabia o que era desejo e muitas vezes pensou que soubesse o que era amor. Até aquele dia.
Quando saíram da reunião e foram a um restaurante jantar com os demais colegas, continuaram a não se falar mas, sentados um em frente ao outro, os olhares que trocavam eram mais que o suficiente. Ao fim do jantar, todos os colegas foram embora. Ele se prontificou a deixá-la no hotel em que estava hospedada. Na manhã seguinte, acordaram abraçados e nus. Ele ainda pedia desculpa pela bagunça que estava seu apartamento.
Passados alguns meses, ela disse que sim ao pedido dele de largar tudo o que tinha, pedir transferência e ir morar com ele, pra sempre.
Tudo correu rápido demais, assim como é rápido o golpe do amor. Agora, ele está há poucas horas de buscá-la no aeroporto, o apartamento está limpo, o cabelo está cortado, a ansiedade lhe transtorna cada vez mais, porque o tempo teima em demorar quando menos precisamos dele?
Não sabia, não importava, era como tinha que ser. Já podia imaginá-la com as malas na mão, óculos escuros, sorrindo. Sim, sorrindo. Ele estaria sorrindo. E a certeza de que a sorte não existe nunca estaria tão viva em seu pensamento.

Comentários

Elber disse…
Simplesmente, extraordinário. De fresh-back, via-me como personagem desse conto. Bem pensado. Parabéns meu amigo. Agora tenho que ir, vou cortar os cabelos e fazer a barba.
Elber disse…
Simplesmente, extraordinário. De fresh-back, via-me como personagem desse conto. Bem pensado. Parabéns meu amigo. Agora tenho que ir, vou cortar os cabelos e fazer a barba.

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