Numa noite fria

Como se a escuridão da sala apagada pudesse esconder de si mesmo o bater do próprio coração, permanecia calado, sentado na poltrona, imóvel tal qual uma estátua de cem anos. O único sinal de vida fora de seu pensamento eram os zumbidos de carros cruzando a avenida por trás da janela. Lembrando-se dela, virou-se. A cortina cerrada não permitia-lhe enxergar a noite de ventos frios que havia lá fora. Mais um zumbido de carro, tocou o próprio pulso, quatro da manhã. Um cansaço pesou-lhe os ombros, levantou-se com dificuldade e foi até a sacada.
Dez minutos passados, ele olhando para o conjunto de janelas apagadas do outro lado da rua, os postes de luz acessos transbordavam uma luz amarelada e velha nas calçadas varridas pelo vento incessante, tocou-se no rosto, o frio das mãos contra o frio do rosto. A ponta do nariz parecia ter caído, a fumaça do cigarro confundindo-se com o ar condensado da boca.
Ouviu, então, um estalido vindo da outra sacada, seus olhos se cruzaram com os olhos da vizinha e ambos estremeceram assustados.
- Boa noite. - ele disse em voz baixa, acompanhado de um aceno com a cabeça. Ela retribuiu com um aceno apenas.
Ela estava enrolada a um cobertor, braços cruzados contra o peito, devia ter a mesma idade que ele, talvez um pouco menos, era nova no prédio e havia cruzado com ela umas duas vezes pelo corredor. Mas não se importou em travar qualquer conhecimento com ela, ultimamente ele andava pouco preocupado com as coisas que vinham de fora.
Ao ver que acendia mais um cigarro, ela pediu um cigarro. Ele estendeu o braço e deu o cigarro recém aceso. Depois acendeu outro para si e, em silêncio, fumavam e soltavam a fumaça que se confundia com o ar condensado que saía de suas bocas.
- Você está preocupado? - perguntou ela, apagando o cigarro no chão.
- Não... acho que não. Por quê? - perguntou ele, hesitante.
- Numa hora dessas, num frio desses, acho que só uma pessoa preocupada estaria aqui fora, olhando para o nada.
- É talvez. - não havia vida em sua voz.
- Eu estou.
- Está?
- Sim... mas isso não é uma preocupação que devo dividir com você.
Ficaram novamente quietos, mas ele percebeu nela uma evidente inquietação e, como alguém que acaba envolvido em algo que não gostaria, continuou:
- Às vezes, falar com um desconhecido alivia mais do que confessar algo pra um amigo.
- Não sei de onde você tirou essa idéia. Já fez confidências a algum estranho antes?
- Talvez num tempo de imprudência.
- Sim, imaginei... A verdade é que me preocupa estar acordada há esta hora, sem sono algum porque fico girando na cama, com medo do que está acontecendo na minha vida, como se tudo estivesse fora de ordem e esta desordem estivesse provocando a minha destruição... - calou-se, sufocando um soluço com a boca.
- Acho que deixo uma tristeza dentro de mim porque é a única certeza que tenho na vida.
- Será que isto é um doença?
- Não sei, talvez.
- Meu nome é Márcia.
- O meu é Antônio.
- Eu não tenho ninguém para dividir a cama.
- Nem eu.
- Porque agimos feito loucos quando estamos desesperados?
- Porque o desespero nos faz agir.
- Você gosta de vinho?
- Tenho uma garrafa aberta na geladeira.
- Quero dormir essa noite ao seu lado.
- Vem, a porta está aberta.

Ela sumiu porta adentro, pouco depois, a porta de entrada do apartamento rangeu, ele voltou à sala e acendeu a luz. Ouviu um som abafado e distante. Não soube precisar se era o próprio coração ou o despertador.

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