Um cartão de Natal

Não é exagero dizer que há horas ele estava ali, sentado na cadeira desconfortável de madeira, com a ponta da caneta pingando tinta azul no branco cartonado do papel. Coçava a têmpora num tique nervoso, como se as pontas dos dedos fossem capazes de fisgar a idéia de dentro de seu lago de imaginação. O lago estava seco. Pensar nisso o fez relembrar dos dias de que caminhava muito cedo, pés no chão, com um balde de alumínio numa mão e, na outra, a mão pequena e calosa do irmão mais novo, percorriam quilômetros até um açude que ainda não tinha sido devorado pelo monstro Sol e sua magia negra de fazer desaparecer a água.
Chegavam no açude e enchiam o balde com a água barrenta que os animais deixavam. No caminho de volta, cruzavam com uma infinidade de carcaças e ossadas de bois, vacas, bodes. Do sertão só sabe quem lá viveu. Ele sabia e não queria mais saber.
Uma buzina estridente na rua o despertou de sua seca viagem, voltou a si. O papel branco marcado por uma infinidade de pequenos pontos azuis, todos muito próximos. "Estraguei o papel", pensou, mas não havia outra para repor, suspirou, contentando-se com aquele mesmo, deixou a caneta de lado e acendeu um cigarro. O último.
A vista de sua janela não era bonita, mas gostava de ficar ali, olhando para a rua suja do cortiço, vendo as crianças correndo de um lado para outro, umas completamente nuas, outras vestindo um short sujo e rasgado. Via também as gordas mulheres de lenço na cabeça passando com trouxas de roupa, para lá e para cá. Algumas cantavam e riam, outras pareciam não lembrar que estavam vivas. Aquelas pessoas pareciam todas saídas do mesmo lugar que ele saiu, todas saídas da miséria seca e aportadas na miséria suja. "A pobreza é um defeito", costumava pensar, mesmo sem saber o significado desse pensar.
A pobreza era a mesma que da sua terra Natal, mas ele não era mais o mesmo menino que cruzava a caatinga em busca de água. Tanta coisa que teve que suportar nos anos de solidão vividos naquela cidade estranha e gigantesca que ele mesmo passou a ser um tanto estranho. E gigantesco.
A sujeira que ele via não ea capaz de lhe sujar o que guardava em si, o suor de seu labor não lhe era fétido, era sim, o cheiro que a esperança deveria ter. Acordava cedo todos os dias e dormia tarde, o pouco tempo de folga era reservado a observar as coisas acontecendo do lado de fora dele. Por dentro havia um gigante que dava passos largos e certeiros em busca de um horizonte mais bonito. Não seria à toa sua luta e ele fazia, dia a dia, isso valer.
Voltou para a cadeira desconfortável, pegou a caneta novamente e, com a imprecisão de um seminalfabeto, começou:
"Mamãe, não poderá ler o que escrevo agora, mas saberá que eu nunca te esqueci. Gostaria muito de passar esse Natal com a senhora, mas quem sabe no próximo ano"...

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