Exercitando-se: Contos de Fadas

 

 

Vou publicar os exercícios que tenho feito em um curso de escrita de Contos para que vocês possam opinar também.

O texto abaixo foi escrito com base na história Chapeuzinho Vermelho.

 

Boa leitura! 

 


Furo de reportagem

Julio Caetano


- Vem comigo, Maciel! Vem, vem..corre! – a mulher gesticulava muito enquanto falava, o ar
lhe faltando - Aqui, mostra aqui, tem sangue. Gente, tem sangue! Olha ali, é um rastro.
Vamos atrás!
Repórter e cinegrafista avançaram uns 20 metros pela mata fechada. A mulher parou,
olhou ao redor e indicou a esquerda.
- Vamos por ali. - suas bochechas queimavam.
O cinegrafista diminuiu o ritmo, sentindo pontadas no fígado, nos rins, em tudo o que era
por dentro.
- Maciel, corre! – como uma mãe que chama atenção do filho em público, a mulher ordenou
sem gritar, arregalando os olhos.
Pararam no meio do mato. A natureza também tem poluição. Sonora. Muitos pássaros
gorjeantes, muitos sons rastejantes, insetos zunindo no ouvido. Marielza, a repórter, já tinha
comido um prato farto de mosquitos. Ouviram um grito abafado e um uivo.
- Vai, Maciel, vai! – continuaram, agora o homem à frente.
Maciel e Marielza abaixaram-se num arbusto quando viram um lobo ereto sobre duas
patas, pelos acinzentados e opacos. O bicho encarava um homem robusto de camisa
xadrez, barba volumosa, segurando um machado nas mãos. Os dois giravam lentos num
círculo aberto, sem tirar o olho um do outro.
- Filma tudo, Maciel. – ela sussurrou.
O lobo atacou primeiro, as garras desceram sobre o Caçador que colocou o braço à frente
e deu um passo para trás, o antebraço ficou marcado com quatro estrias profundas, ele
soltou um gemido e, em seguida, avançou para cima do lobo, levantando o machado e
desferindo um golpe potente onde o pescoço encontra o ombro. O som de osso partido
juntou-se ao de carne sendo lacerada e tendões arrebentando, tudo de uma vez. O lobo
não teve reação e caiu já morto. O Caçador tirou seu machado do corpo do bicho enquanto
o coração do animal ainda jorrava sangue pela jugular.
- Essa foi rápida! – Maciel parecia menos assustado que frustrado.
Marielza aprontou-se para sair do esconderijo e fazer uma entrevista ao vivo com o
Caçador. O furo de reportagem, imaginou, lhe renderia prêmios jornalísticos diversos,
status, dinheiro. Antes que saísse do lugar, do outro lado da clareira, surgiu um vulto
avermelhado. Marielza retraiu-se.
- Jorge! – gritou e encaminhou-se para a clareira rindo – Meu Deus! Fiquei tensa, olha só! –
mostrou a mão espalmada. O outro arrancou a camisa xadrez para enrolar no braço ferido.
- Você podia ter me ajudado. – resmungou o grandalhão.
- E deu tempo, Jorge?! Você viu como esse vira-lata saiu atacado pra cima da gente? Ainda
bem que você deu um jeito rápido nele – rodeou o corpo do bicho envolto numa poça de
sangue -, o filha da puta quase pegou a gente...quero dizer...quase ME pegou. Ia estragar o
plano todo, Jorge. Você acredita? Estragar o plano que levei séculos pra bolar! – chutou o
bicho no saco.
Marielza e Maciel se entreolharam, ela fez um gesto querendo perguntar se ele estava
filmando tudo e ele confirmou com o polegar.
- E agora, que fazemos, Vanessa?
- Ah, agora temos que achar a velha. Com certeza esse bosta falou todo nosso plano pra
ela. Deve estar escondida em algum canto. Vamos voltar pra casa, ver se achamos alguma
pista. Velha do jeito que é, com aquela artrite fodida, não foi longe.
- E se ela fugiu, foi procurar polícia, essas coisas?
- Jorge, para! Vamos voltar pra casa.
- To começando a achar que isso não foi boa ideia.
- Claro que não, uma herança milionária não faz diferença. Fala, Jorge. Não faz, né? - ele
só encolheu os ombros.
A menina colocou o capuz vermelho e seguiu para dentro da mata, em direção à casa da
Vovó, seguida pelo grandalhão. Marielza agradeceu por terem optado por ir pela lateral em
que eles não estavam.
No caminho de volta, Chapéu falava calmamente, o Caçador ouvia porque estava ali, não
porque as palavras eram dirigidas a ele.
- A velha pode ter um esconderijo dentro da casa, tipo um bunker. Se eu chamar por ela,
bom, o Lobo deve ter falado o suficiente pra ela desconfiar de mim – ela parou - mas de
você, virou-se para Jorge -, de você ela não vai desconfiar! O Lobo não sabia do seu
envolvimento até agora pouco. Jorge, escute aqui. Você vai entrar na casa e vai chamar
pela Vovó, faz uma voz de preocupado, meio desesperado, sabe? Diz que encontrou o
Lobo e eu mortos na floresta, que tinha rastro de sangue, fala umas coisas assim, a velha
vai aparecer e, quando aparecer, você... não, você não – falou lenta, olhos enviesados – eu
entrou em cena e dou cabo da mulher. Minha vingança por me deixar séculos e séculos
presa nessa história infeliz sendo que eu poderia estar aproveitando o bom da vida, em
Saint Tropez ou Mikonos. Isso, isso! – falou animada – É isso o que vamos fazer!
O grandalhão não falou nada. As palavras da menina começaram a ruminar em sua
cabeça...ela não sabe de você, você ataca, herança. Num fluxo de consciência que nem ele
julgava-se capaz de ter, vislumbrou a velhinha aparecendo tranquila para ele, em seguida a
Chapéu vindo, ordenando que a matasse, a velha caída no chão e a menina, de alguma
forma, acusando-o do assassinato, ficando inteiramente livre para desfrutar da herança
inteira.
Ele parou um instante, para que as ideias se ajeitassem na cabeça, Chapeuzinho olhou
para trás com uma pergunta nos olhos.
- Nada... não foi nada. – ele disse e sorriu desajeitado.
Ela virou-se e continuaram andando, a cabana já à vista dos dois.
Chapéu viu uma sombra avolumar-se em suas costas e virou-se rapidamente, sacando um
revólver 38 de dentro do bolso do capuz. Atirou à queima roupa, o tiro acertou de raspão no
ombro esquerdo do Caçador. O homem pegou o machado e desferiu um golpe em direção
da menina, que conseguiu desviar, atirou novamente acertando o Caçador na barriga. Ele
retorceu-se e seguiu avançando sobre a menina, antes que ela pudesse apertar o gatilho
novamente, ele deu um tapa na mão da garota e a arma voou.
- Não, Jorge, não! O que você tá fazendo? E nossos planos?
- Nunca teve NOSSOS planos, Chapeuzinho. Agora eu entendi tudo. Você me usou desde
o começo, mas o tiro saiu pela culatra e agora é seu fim!
O homem ergueu a lâmina acima de sua cabeça, a garota deu dois passos para trás e
tropeçou no tronco cortado de uma árvore, caindo de costas no chão. O Caçador seguiu em
sua direção, largando o machado, pegou-a do chão pelo pescoço e a ergueu acima de sua
cabeça, vendo a pele da menina mudar de tom até ficar arroxeada, abriu um sorriso
nefasto, a menina deixou de debater braços e pernas, Marielza e Maciel não piscavam. O
zoom da câmera estava grudado no rosto da menina.
Um tiro ecoou pela mata, afugentando os pássaros. O Caçador sentiu algo lhe queimar a
barriga, olhou para baixo e viu um buraco aberto na pele. Não teve tempo de se virar, caiu
num tombo só, como o Lobo, os dedos afrouxaram ao redor do pescoço de Chapeuzinho
que caiu sem vida no chão.
Marielza e Maciel viram sair de dentro da casa uma senhora com um vestido puído de chita
e um xale roxo sobre os ombros, segurando uma calibre 12, que ainda fumegava pelo cano.
A velha andou em direção aos dois corpos, fez um sinal da cruz e começou a falar algo
incompreensível.
Marielza cutucou Maciel, indicando que deveriam sair do esconderijo e se mostrarem para a
mulher. Com cautela, Marielza levantou-se enquanto se apresentava:
- Senhora... – a velha engatilhou a arma e apontou-a para a repórter.
- Pelo amor de Deus, não atire. Calma. Eu sou repórter do Jornal do Amanhã – a mulher
levantou um crachá.
A velha apertou os olhos e avançou a cabeça, ajeitando os óculos.
- Estou com meu cinegrafista – fez sinal para que Maciel se levantasse – nós
acompanhamos tudo. Podemos conversar?
A velha abaixou a arma e fez sinal para que se aproximassem, a arma ainda apontada para
ambos..
Dentro da casa, a velha contou o que tinha acontecido antes que Marielza e Maciel
aparecessem, sua desconfiança com a neta, que na verdade não era neta de verdade,
contou que já tinha percebido o plano de eliminá-la para que pudesse ficar com a herança,
o Lobo era seu confidente e a ajudou... “coitado, morreu na missão de me proteger”, falou
com pesar.
- Tudo por conta da ganância, minha filha. Três corpos ao redor da minha casa e foi a
ganância que levou essas três vidas.
- Vovó, desculpe, mas eu preciso perguntar – Maciel interrompeu – a senhora sendo uma
pessoa tão rica porque ainda fica nessa casa tão afastada, sem conforto! A senhora é
idosa, pode precisar de ajuda e não terá ninguém tão perto pra lhe ajudar.
A velha sorriu e serviu-se um pouco mais de chá.
- Minha casca pode estar enrugada e de aparência frágil, meu filho. Eu até finjo bem as
mazelas que o tempo faz com nosso corpo. Acontece que por dentro eu estou plena, vivo
sem uma dor sequer, me exercito todos os dias e, te garanto, vou viver muito mais do que
vocês imaginam! – Fez uma cara de quem aprontou alguma e continuou – Eu descobri o
elixir da vida eterna.
Os dois se entreolharam num misto de incredulidade e escárnio. A velha olhou sério e fixo
para os dois e continuou:
- Vocês duvidam, não é? – ela ficou em silêncio, coçou o queixo por uns segundos e
levantou-se.
- Venham comigo.
Os três saíram da casa e avançaram pela mata até chegarem numa gruta escondida por
galhos e troncos. Entraram e ouviram o som de água gotejando.
– Aqui – a velha anunciou parando em frente a uma poça d' água formada por pingos que
vinham de um estalactite que cintilava mesmo no escuro. A luz que vazava para dentro da
gruta mal iluminava o rosto dos três.
– Eu não quero ver mais mortes pela mesquinhez e pela ganância, meus filhos. E isso eu já
vi demais! Muitos tentaram descobrir esse elixir, apontou para a poça, muitas mortes foram
causadas, muitos futuros perdidos. Estou cansada disso. Não quero mais esconder isso de
ninguém, eu quero que vocês levem essa verdade para o mundo. Vocês, jornalistas, são os
paladinos da verdade, levem a verdade e façam com que esse elixir chegue até todas as
pessoas do mundo, estou cansada de ser a guardiã desse segredo. Façam isso pela
human...
Maciel ergueu sua câmera e deu com toda força na cabeça da mulher, que caiu
desacordada.
- Maciel! – Marielza olhou para ele com os olhos arregalados, as mãos à boca – você matou
a velha!
- Ué, não tem vida infinita? Nem deve estar morta. – Marielza aproximou o ouvido do corpo
da mulher.
- É, está respirando. Que ideia é essa, Maciel!?
- Ora, a gente toma dessa água de vida eterna, volta pra cabana da velha, achamos a
fortuna, que eu sei que ela esconde a fortuna dela lá, tenho certeza! A gente volta, pipoca a
velha ou arranca a cabeça dela, sei lá! Eu queimo essa câmera e depois os policiais que se
virem pra descobrir o que foi que aconteceu.
Marielza ouviu o plano com o queixo caído, começou a mexer os olhos para cima, franziu o
cenho e pensou que não era tão ruim a ideia. Voltaram para a cabana, sentindo um gosto
alcalino na boca e arrastando a velha. Antes de entrar na casa, Maciel pegou o machado do
Caçador e deu fim à Vovozinha.
Depois de muito vasculhar e encontrar a passagem secreta que dava acesso a um
ambiente subterrâneo onde lingotes e mais lingotes de ouro reluziam como o Sol, Marielza
e Maciel sorriram um pro outro, certos de que viveriam felizes para sempre.

Comentários

Tha Monttiel disse…
Nossa,fiquei passada, adorei a proposta, confesso que imaginei outro final para os dois. A história me prendeu e quando achei que fosse acabar, pá, mais história. Arrasou! Outra coisa que me impressionou muito foi a Marielza e o Maciel terem chegado na floresta antes da Record.
Pacheco disse…
Ganância é um mal sempre presente! Que história cheia de reviravoltas!!! Gostei muito!

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