O Universo numa casquinha de sorvete

Peguei as chaves do carro como quem não tem nada a perder, e eu tinha? Abri por completo o vidro e deixei minha cabeça levemente inclinada - cabelos ao vento - até chegar o carro da frente e o trânsito. Aumentei o som no rádio para não deixar a adrenalina cair. O carro continuava parado.
Na esquerda, uma mulher de meia idade parecia entediada cutucando as unhas; na direita, um velho num carro pequeno e amassado, olhava para frente, franzindo a testa e forçando os olhos, começou a olhar para os lados até chegar a mim.
Virei o rosto e tamborilei na lataria do carro. A adrenalina já havia escorrido pelo suor das mãos e a fervura no sangue latino não aquecia mais nenhum coração. Percebi então como uma cidade grande pode esmagar os sonhos e anseios de homem comum num breve surto de ação libertária.
Esmaguei o maço de cigarros ao mesmo tempo que soltei uma fumaça entediada pela boca. Deveria parar de fumar ao mesmo passo que perco minutos, horas e dias sentado no banco do motorista, torcendo para o carro da frente andar.
O carro não andava.
Os motociclistas já estavam com celular em mãos ligando e avisando o atraso na chegada dos documentos, os vendedores passavam pelos carros como personagens daquela trama com suas caixas de isopor e uma garrafa de água e lata de refrigerente vazios nas mãos. Havia ainda o calor.
Disse Oi e outras coisas breves ao telefone, suave som que vinha daquela outra voz e fazia com que as coisas paressem de derreter e um tremor pela espinha que acalentava as palpitações e o paladar. Um sorvete de casquinha tão bom e tão breve que nem sei se merecia existir porque repetição só do que for bom.
O amargo fica para depois.

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