Um gosto azul

As nuvens pintadas em tons de cinza iam acinzentando também a cidade, os postes, as ruas e os rostos das pessoas que começavam a acelerar o passo para escapar da chuva que se formava. A moça que lê as notícias do tempo no telejornal estava certa desta vez.
Eu a ouvi falando de pancada de chuva forte à tarde ainda pela manhã, enquanto tomava um pingado e comia um pão com manteiga na chapa no boteco, antes de entrar no trabalho. Bebia o pingado e mastigava o pedaço quente de pão como se respirasse o ar: automaticamente.
A sensação que tinha era de estar suspenso, já havia sentido assim várias vezes, este estado de suspensão, como se minhas pernas não pudessem me suportar e, então, eu flutuava, segurado por umas mãos ou outras forças que vinham de cima. Talvez fios muito finos e transparentes de nylon, tal qual aqueles que seguram os bonecos de pano ou de madeira, manipulados por um homem de cabeça grande e mãos habilidosas.
Não sei se estava suspenso e manipulado, sei dessa sensação que fazia de mim um ser diferente de outros dias, mas não tão diferente a ponto de me transformar em outra pessoa. Estas transmutações deixo para as lagartas e as borboletas.
As pessoas aceleram ainda mais o passo, algumas entram nos comércios e noutros lugares, homens estacionados na calçada oferecem guarda-chuvas, por cima de nós o cinza ficava cada vez mais fechado, alguns carros já acendiam seus faróis e as lojas, suas luzes. Podia ser um bom momento de entrar no shopping, afundar o corpo na poltrona confortável da sala de cinema e deixaa mente vagar por uma hora e meia ou duas horas, mas passei reto pela porta de entrada, aquela suspensão que senti pela manhã ainda guardava resquícios em mim, e esses requícios me tornaram avesso a entrar naquela sala escura e fechada para ver a vida de pessoas que não existem, nem existiram, só para amenizar um pouco a vida de quem é.
O vento sopra com mais força e faz atravessar um fio gelado pela minha espinha, não sai previnido para frio ou chuva, sinto crescer na pele pequenas bolinhas, uma ao lado da outra, os pelos eriçam-se, ainda assim, sinto escorrer uma gota de suor da testa.
Os primeiros pingos começam a cair, poucos e gordos, machucam quando tocam o corpo, o passo apressado de uns se transforma em correria, poucos segundos depois as gotas começam a despencar do céu como se corressem para encontrar uma alegria, o primeiro clarão no céu e o estrondo de um trovão. O intervalo entre a luz e o som é de três segundos, contei, então o raio está longe um pouco, três quilômetros. Só não sabia para que direção.
A calça molhada pesa-me as pernas e dificulta o andar, sentia encharcadas as meias, já não me preocuparia mais em deixar de pisar em qualquer poça que surgisse à minha frente. O vento sopra com mais força e os pingos de chuva são como sal grosso atirados de uma espingarda de pressão, ardem ao tocar a pele.
A pele, é o que me guarda de outra coisa que não sei, tão frágil esse invólucro que parace não ter sentido existir. Passo a língua por meus lábios molhados, porém, ressequidos, uma sensação de falta, algo incompleto. E eu sei.
O gosto que tenho na boca é indecifrável, nem do pão, nem do café, nem de nada de se mastigar ou beber. Um gosto azul é o que me vêm à cabeça. Um gosto nitidamente azul, como aquele céu bonito de nuvens brancas e fofas que apontei para que você enxergasse antes de partir.

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