Ali, dobrando a esquina.

Quando chegar, que não me pegue desprevenido para que eu possa vestir uma roupa adequada e usar um perfume novo. Não pelo galanteio, só pela cerimônia. Não quero que pense de mim que deixo-me desleixado; sou assim apenas às terças-feiras, dia em que acordo muito cedo para fazer diversas atividades inúteis e mal tenho ânimo para pentear os cabelos. Que não me venha numa terça.
Para causar melhor impressão, escovarei os dentes e a língua, passarei fio dental e chuparei uma bala de hortelã para deixar o hálito artificialmente refrescado. Unhas cortadas rentes à pele, o que sempre me causou aflição, mas por um bom motivo deixarei assim.
Passarei graxa nos sapatos, deixando-os como no dia em que os comprei, naquela tarde acinzentada e triste, o dia chorava uma garoa fina e constante, o vento me assobiava aos ouvidos uma canção esquecida numa rádio de tempos atrás. Saí da loja, naquele dia, com a caixa de sapatos numa mão e o coração apertado na outra. Mas os dias foram se seguindo e a mão ficou mais frouxa, o coração um pouco aliviado.
Não se preocupe, não ficarei fazendo rodeios, tateando o passado, sei que isso cria o pior dos constrangimentos, farei de tudo para que não haja nenhum momento de silêncio abismal, um baixar envergonhado de olhos, como se pedíssemos desculpa. Desculpas não nos cabe, sei e sabe disso também. O que aconteceu e o que acontecerá são apenas suposições. Vale o agora, na hora em que chegar.
Mas não me avise também com muita antecedência, pode ser ainda pior. Posso não saber controlar-me no tempo que nos falta e criar grandes complicações, posso querer fazer o que não devo pra tentar me adequar a você. O certo, se houvesse certo, seria deixar acontecer como se a relação entre dois pudesse ser natural, realmente...
Sei, sei da ilusão que crio com essas imagens e que há perigos que as rondam, um perigo calculado e indomável, um força maior do que o meu poder de controle. Já sentiu isso também? Ou tenho pensado demais?
Sinta-se livre para ser como sempre foi, não quero nada seja forçado ou fingido, mesmo sabendo que o fingimento pode ser o melhor dos escudos pro coração. Porque não acredito mais em sinceridades, verdades, coisas assim, parecidíssimas e que existem apenas para doer. Pois dói, dói a verdade de um beijo não dado, dói a sinceridade de um coração partido. Não conheço ninguém que tenho chorado ao ouvir uma mentira, mas devem existir pessoas assim. Não eu.
Também não pense que o tempo me fez embrutecer, nenhuma pedra está colocada no lugar do meu coração, não se engane, o papo cabeça e pessimista é só fachada. Preciso de muitas fachadas para sobreviver aos dias, principalmente às terças. E gosto um pouco disso, das fachadas, têm lá seu encanto, como um desconhecido numa cidade desconhecida, abrindo lento a porta de um bar, os olhos curiosos o cercando,um ar grave, misterioso, cabeça baixa, a fumaça azulada do cigarro saindo boca a fora...
Por isso confirmo-lhe, venha sem medo, continuo aqui mas, caso apareça e eu não estiver, pode ir até ali, dobrando a esquina. Lá me encontrará sem erro.

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