O armário de Jacira

Há dias que Jacira andava estranha, quase não conseguia parar no lugar, ia e vinha dentro de casa. Na cozinha, na sala, no banheiro. Não parava quieta. Os filhos foram os primeiros a perceber e, ao perguntar à mâe o motivo da agitação, recebiam um "Mas, que moleques! Não tenho nada, oras."
Só parava mesmo para ficar olhando para o canto do quarto onde ficavam as caixas que serviam de guarda-roupa para as roupas dela e do marido. Desde uma enchente que invadiu a casa que moravam, não tiveram condições de comprar outro. As caixas foram a solução temporária para o problema. Já faziam 2 anos.
A estranheza de Jacira começou a ficar perigosa quando atingiu o esquecimento. Um dia, esqueceu a boca do fogão ligada, queimou o arroz, queimou a panela, uma fumaça escura tomou conta de toda a casa (que era bem pequena). Outra vez, saiu do trabalho e esqueceu de pegar o filho mais novo na creche, no dia em que o mais velho tinha treino na escola e não podia pegá-lo. Só se deu conta da falha quando uma das vizinhas tocou a campainha com o menino chorando segurando sua mão. Jacira pediu mil desculpas, não sabia onde estava com a cabeça, ofereceu um café, aceito pela vizinha, que ao dar o primeiro gole na xícara, viu que ao invés de açúcar, Jacira tinha posto era sal.
O marido só foi dar por estas estranhezas quando a mulher não pôs feijão em sua marmita. Naquele dia, chegou batendo a porta, tirou a marmita da mochila e jogou-a no chão. "Compro feijão nesta casa pra quê? Pra você me por na marmita! Onde você tá com a cabeça, Jacira. Sabe que não vivo sem meu feijão, caramba!" Ela desculpou-se e serviu seu prato de janta com o dobro do feijão, pra compensar.
Numa terça-feira, Jacira acordou uma hora antes do normal. Rodou a casa toda até dar a hora de chamar o marido que levantou-se e foi trabalhar, um pouco mais tarde, fez o mesmo com as crianças. Jacira era a última a sair de casa, mas naquele dia ela não saiu. Havia pedido dispensa do trabalho, em segredo, e o motivo bateu à sua porta no começo da tarde.
Os entregadores eram dois altos negros de sorrisos grandes e brancos. Ela fez a indicação de onde deveriam por as caixas. Ali, no canto do quarto, onde ficavam as outras caixas. Os homens desceram tudo do caminhão e logo começaram a montagem, que não demorou muito. Jacira observava atenta e maravilhada a construção de seu armário novo. Era de madeira clarinha, com pegadores dourados e alto, alto. Tinha até maleiro.
Quando terminaram o serviço, Jacira agradeceu e deu R$ 1,00 para os moços dividirem um café. Fechou a porta da frente e correu para o quarto. Passou a mão por todo armário, a madeira era lisinha, lisinha. Abriu-o, um espaço enorme lá dentro, muito mais do que as roupas dela e do marido juntos precisavam. Abriu as gavetas, tudo se abria e se fechava sem fazer barulho. Enfiou a cabeça no armário pra sentir aquele cheiro que não sabia direito o que era, um cheiro tão bom, cheiro de madeira, cheiro de coisa nova. Sentiu escorrer uma lágrima pelo rosto.
Os filhos da escola e encontraram a mãe em pé ao lado do novo armário, eles correram para ela, foram logo abrindo as portas e dizendo "que lindo, que lindo!". O mais novo disse que também queria um. Olharam mais um pouco e se desinteressaram, foram brincar pra rua.
O marido chegou e não acreditou no que viu:
- Jacira, de onde saiu isso?
- Da loja, Jair.
- Mas você deve estar maluca...olha o tamanho desse armário, deve ter custado um dinheirão!
- Tava em promoção, não foi muito, não. Parcelei no carnê.
- Escuta aqui, Jacira. Não pense que eu vou fazer trabalho extra pra ficar te dando luxo, hein! Já tinha dito que ia comprar um armário no Seu Zé, já tinha dito!
- Mas lá é coisa velha, Jair. Vem aqui, olha só que madeira bonita, lisinha... vem sentir o cheiro de coisa nova.
- Que cheiro, que nada. Vou tomar banho. E me prepara lá o prato que tô com fome...
Jacira viu o marido dar-lhe as costas, sentiu o coração apertar um pouco, mas foi só um pouquinho. Logo ele se afrouxou ao sentir o cheiro da madeira de novo.

Comentários

Anônimo disse…
Adorei o texto. Entrarei mais vezes.
Obrigado.

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