Uma vida bem simples


Tenho admirado, e até invejado, minha cachorrinha Shakira, ela, com seus pelos dourados, olhar curioso e trejeitos atrapalhados, mas espertos, fica andando pela casa, como quem procura alguma coisa para fazer, sem ter a mínima ideia do que seja e, na falta de objetivo, senta-se, abaixa a cabeça, suspira e olha para os lados com um certo vazio nos olhos, não por falta de Vida, mas por excesso dela, olhos vazios procurando coisas para preenche-los. Como seria bom se as pessoas também fossem assim.
Mesmo tão nova, ainda uma criança, ela tem muito a ensinar. Sua determinação em mastigar com gana qualquer objeto que esteja próximo, os bichos de pelúcias, a quina do sofá e minhas mãos são seus favoritos, mas isso não faz com que ela, por vezes, vá mastigar o corrimão, uma meia ou uma garrafa PET.
Levo-a para passear, uma ou duas vezes por dia, e fico admirado com a facilidade que ela tem em se dislumbrar com as coisas, mesmo as já conhecidas, ela anda pelas calçadas e cheira com afinco e louvor o pequeno arbusto que ela havia cheirado ontem ou há 5 horas atrás como se fosse um algo novo, brilhante e lindo!
Os cachorros da vizinhança latem desesperados enquanto ela anda comigo pela rua e ela não se dá ao trabalho de abrir a boca, quer apenas andar, sentir os cheiros, por a língua pra fora da boca. Num ato de educação canina, por vezes paro no meio do caminho para que ela entenda que eu é quem vou conduzi-la pelo caminho e não o contrário, como ela usualmente acha. Aí ela pára também, olha para os lados e para cima, para mim, me encara como quem diz: " Ei, o que você tá fazendo, tá me fazendo perder tempo, eu quero ir pra frente, eu preciso conhecer outros lugares e outros cheiros..."
Depois do passeio, voltamos cansados para casa, ela vai tomar água no seu pote, vai até a sala e, normalmente, gira o corpo duas vezes antes de se acomodar, preguiçosamente no chão, ainda suspira antes de fechar os olhos para uma soneca.
E ela é quem está certa...
Nessas horas eu fico olhando-a sentindo um pouco de inveja daquela vida que pode parecer vadia demais para uma pessoa que precisa trabalhar pra ganhar dinheiro e pagar as contas e pagar as alegrias e pagar e sentir, sentir-se amado, sentir-se rejeitado, sentir-se em vão. Um vão. Mas vadios somos nós, vadio sou eu que deixo que as coisas do dia-a-dia acabem com todo o novo e o bonito de cada dia, de cada sorriso, das alegrias e das tristezas. A gente vai vivendo um dia sabendo que amanhã terá outro dia bem igualzinho ao de hoje, acaba a novidade, acaba a ansiedade e a vida burocrática está instaurada, esperando apenas que chegue o fim do dia para carimbar na folha: Vivido.
Por uma vida diferente e com algo melhor do que a obrigação dos dias é que passo a qadmirar ainda mais minha Shakira, pois ela, com a simplicidade e a sinceridade de uma criança, me mostra abertamente, todos os dias, que vale a pena criar expectativas e vale a pena acreditar que nada se repete de um dia pro outro, mesmo que as coisas do dia sejam as mesmas.

Comentários

meobatista disse…
Amei sua crônica, posso chamar assim? Mesmo se não soubesse que fora você que escreveu, acho que saberia, pois tem a sua cara.
Parabéns, meu amigo. Vá em frente, escreva, pois vc escreve bem.

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