Devaneio

O espaço parecia se apertar à medida em que os poucos metros avançavam no decorrer infinito do tempo, as faixas brancas sequenciais pintadas no preto do asfalto pareciam ziguezaguear diante de meus olhos, tive medo de estar delirando e sofrer uma síncope ou uma combustão espontânea. Um carro parado no meio da avenida não ajudaria em nada o transito que já se fizera caótico àquela altura.
O cérebro se desligava por instantes e retomava sua atividade quando uma buzina aguda vinha de uma moto passageira, tiram a concentração e humor de qualquer. A qualquer hora. Todos os dias o radio noticiava um acidente: carro e moto, moto e moto, caminhão e carro, caminhão e moto. E eu nunca tinha visto nenhum acontecer ao vivo. Confesso que algumas vezes, ao ouvir aquela buzina estridente e um corpo passando zunindo ao meu lado, torcia para ouvir um barulho de freada brusca e o choque dos metais, fosse carro ou caminhão, ônibus, microônibus, lambreta, patins motorizado. Esse último não, deve ser feito todo de plástico.
Pensar tragédias deve ser normal, espero que seja. Não que eu pense muito sobre essas coisas, mas elas acontecem e eu penso nelas, mesmo se não acontecem. É o tal do Thanatos, segundo Freud, Pulsão de Morte. Logo, se um dos grandes pensadores da Humanidade explicou esse tipo de fenômeno, vejo-me numa condição plenamente favorável de imaginar um acidente à minha frente. Não seria necessário haver vítimas fatais.
Enquanto o tempo passava a música do rádio perdia o sentido, como uma palavra repetida muitas vezes, os carros ao lado tornavam-se seres metafísicos de uma outra dimensão, incapazes de compreender o estado em que me encontrava. Nem mesmo eu compreendia. Assim, quando não se sabe o que se está fazendo, mas há a pressão de se fazer: eu fiz. Continuei andando e parando, ouvindo as buzinas estridentes e o rangido chato da pastilha de freios do meu carro.
MEU CARRO... quando mais jovem eu nem poderia imaginar essa sensação, ter o próprio carro e ir para onde quisesse, sem pedir emprestado, sem dar satisfação. De repente, às 3 da manhã pegar o documento, as chaves e ir... pra onde quer que fosse. Mas, às vezes, o desejo realiza-se num tempo em que o desejo já não é o mesmo. Isso também deve ser normal.
O espaço de linhas pontilhadas e brancas se afunilando à minha frente, uma falta de opção que apertava forte minha garganta, um jeito de mexer as mãos que parecia pura encenação e não era, não foi, não sei.
Os faróis foram se acendendo lentamente, os feixes amarelados de um lado e os pontos vermelhos e parados do outro, à minha frente, ao meu lado... e eu também, um feixe amarelado e um ponto vermelho. Ser tão igual e, mesmo assim, tão diferente. Por trás de cada uma daquelas janelas uma história e a minha, mais uma. Sem passado e sem futuro. Ali, estávamos numa comunhão, partilhando coisas e negando outras.
Mais uma vez um desejo desabrochou, como sempre acontece. E eu queria que não acontecesse depois de não precisar mais acontecer, eu queria uma melodia tranquila, uma que fizesse dormir o bicho que rondava em mim.
Pingos começaram a salpicar o vidro do pára-brisa - bom sinal - pensei. Os mais antigos sempre diziam que a chuva ajudava a dormir.
Que esse monstro possa ouvi-la de dentro de mim.

Comentários

Thalita disse…
Pode ser normal pensar em acidentes, mas é muito dificil conviver com as consequencias dele todos os dias. Não é?! Talvez não seja tão bom e nem tão normal ficar pensando nisoo....Beijos

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